A vida é difícil de viver, diria mesmo que a vida é como uma calçada em obras, com as suas crateras, os seus enormes rochedos, pedregulhos, pedras e pedrinhas que não são intransponíveis... ou melhor, a própria vida nos obriga a transpor todos estes «obstáculos» - cada dia que passa maiores, mais fortes, mais penosos de enfrentar...
Eis que sou levado em mais uma enchurrada: a degradação assola-me, a morte tenta rondar, os alicerces cedem, os esteios afastam-se, as torres (contruídas com tanto suor, lágrimas e amor) ruem... e do meu antigo castelo nada resta salvo ruínas...chamas que se apagam...masmorras que se abriram e tudo me atormenta de novo... (nem sequer a esperança ficou comigo enclausurada).
Depois da tempestade segui o provérbio que diz que se devem apanhar todas as pedras do nosso caminho para que mais tarde se construa, com as mesmas, uma casa, um castelo, ou algo do género... Bem, as minhas 'pedrinhas' ofereceram-me uma réplica de
Versailles... Gigantesca nova morada cheia do que mais me agrada, mais me extasia, mais me revejo: bustos, lustres, lagos, jardins, marmórias galerias, quadros, brilho, luz... um sonho para qualquer
amante da arte e do vislumbre. O meu palácio solar, o meu reflexo (?). À noite tudo se desvanece num pavoroso e sublime grito... este palácio nada mais é do que um baú de tesouros com memórias que não lhes é permitido revelar e das quais as próprias gentes jà nem memória têm...Como eu, são a mais admirável das 'relíquias'; também elas foram ultrapassadas pela angústia e desconforto da noite sem memória que as devora e gangrena por dentro e, contudo, tudo é indiferente,
tudo não atinge a sua angústia,
tudo é imotavelmente e irremediavelmente indiferente.
Canso-me. Tenho cansaço de tudo, de todos, de todas as coisas que foram, das que já não o são, e cansa-me, desde já, tudo o que está por vir... Tenho saudades de
mim. Tenho saudades da pseudo-liberdade de outrora... Sinto falta daquilo que fui - daquilo que pensava ser por e para outrém -, sinto falta de amar como devia ser -
correspondidamente, apaixonadamente, desinteressadamente, mortalmente, eternamente...Quem ama é louco. Quem ama fica louco. Quem ama sofre. Quem ama deixa de viver...por isso me cerca A inevitável, A mais certa de todas as
etapas de qualquer vida...
O meu
Versailles atormenta-me; sufoca-me na sua grandeza, no seu cheiro a mofo! A meu
Versailles cresce comigo e, ao crescer, derruba as paliçadas, quebra-me os bustos, tapa-me as janelas! O
Rei-sol já ca não vive... tapei-lhe as janelas e a noite matou-o...já não entra mais até que me apeteça voltar a olhar para ele e deixar-me consumir. A negrura da noite gela, mas também se gelavam os corações quando se tinha de os operar...no fim da operação virá a cicatrização e, no fim desta, talvez o volte a querer aquecer - ou talvez o deixe gelado (nem eu sei).
Canso-me; sofro por me pensar, bem como pensar os outros em sua vez... Não sou psicólogo, nem sequer sou «pago»; porquê tantas perguntas se sabem que não posso nem quero dizer a verdade que jà sabem e também não querem ouvir!!!?
«Derrocada pavorosa» e que desgraça tão grande saber que tenho «tantas almas a rir dentro da minha» como o disse F.Espanca. Tudo se minimizou face a esta
rasteira...as grandes muralhas como que se dissolveram face a esta montanha! E tudo é efémero; até este
desabafo me parece já ridículo e irrisório...enfim. Tudo me faz falta e, contudo, tudo me cansa, logo, sou mutilado com dois gumes...
«Bom é que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos
Porém, não busqueis poder no amor
Que
só quem da sua lei se sente escravoPode considerar-se realmente livre.»
F.Pessoa